Gravidez e bulimia: “Pela primeira vez na vida eu fiquei triste em perder peso”
- unitrata
- 13 de dez. de 2023
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A escritora Carolina Hissnauer tem transtorno alimentar desde a adolescência. Com a chegada de uma gestação, a cobrança sobre a alimentação aumentou

Carolina tem medo de desenvolver depressão durante ou depois da gestação — Foto: Arquivo pessoal
A gravidez da escritora Carolina Hissnauer, de 25 anos, veio com uma mistura de emoções: felicidade, medo, esperança e cobrança. Carolina luta contra a bulimia nervosa desde a adolescência, e tem sensibilidade ao aspecto de vários alimentos. Com a gestação, a cobrança sobre a alimentação ficou mais rígida.
As mudanças hormonais também trouxeram enjoos e ainda mais sensibilidade com a comida. Hissnauer conta ter tido medo que os vômitos e as mudanças físicas da gravidez — como ganhar peito e barriga — e a diminuição da dose de seus medicamentos psiquiátricos, a levassem de volta para a insegurança com o próprio corpo e para a indução da magreza.
Na décima primeira semana de gestação, no entanto, ela conta que pela primeira vez em sua vida ficou triste em perder peso.
“Estou gostando da barriguinha, estou gostando do meu corpo”, diz. “No começo, tive medo que o vômito se tornasse um gatilho para o transtorno, mas não, é diferente. Antes, quando eu induzia o vômito, eu não estava passando mal. Agora, eu passo mal mesmo”.
A relação complicada com o corpo começou entre os 12 e 13 anos. Hissnauer parou de comer, começou a desmaiar na escola, estava sempre sem energia e dormia nas aulas. Por volta dos 14 anos, começou a induzir vômitos. Uma professora de educação física notou o comportamento, construiu uma relação de confiança com a aluna e Hissnauer pediu ajuda.
A escola contatou a família da estudante, que recebeu a notícia com certa desconfiança. “Eu me inspirava em corpos esqueléticos que eu via no Tumblr”, conta. “No começo todo mundo achava que era frescura. O ato de não comer era visto como coisa de adolescente, frescura. Foi difícil para minha família aceitar que aquilo era um problema”.
Quando a família entendeu a batalha interna da adolescente, começou a luta da estudante pelas pazes com a comida. Aos 19 anos, Hissnauer foi internada com bipolaridade, um transtorno que causa oscilações no humor e dificulta o tratamento da bulimia nervosa. A escritora conta que passou por quatro outras internações até os 21 anos — três relacionadas à bipolaridade e uma ao transtorno alimentar.
Hoje, ela ainda tem bulimia nervosa e bipolaridade, mas conta que há aproximadamente dois anos começou um novo tratamento para o transtorno alimentar que ajudou na sua evolução. Ela diz que sua relação com o corpo é melhor, mas a sensibilidade com a textura, cheiro e aparência dos alimentos dificulta a suplementação que ela precisa para a gestação, o que gera muita culpa.
A surpresa da gestação mudou a rotina de Hissnauer. Ela conta que antes estava fazendo um curso de psicanálise, escrevendo e desenhando. Depois da gestação, se sente sem pique, não sai de casa e passa muito tempo dormindo. A escritora tem medo de desenvolver depressão durante ou depois da gravidez, mas o bebê a motiva a continuar forte.
Atenção aos sinais
“A fase da idade fértil apresenta uma grande sobreposição com esse período de maior incidência dos transtornos alimentares”, diz a psiquiatra Mireille Almeida, que coordena um ambulatório de transtornos alimentares na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo e fundou uma clínica especializada nesses casos. “Se a gravidez não for planejada, perdem-se cuidados básicos que vão desde suplementação nutricional até questões psicológicas e sociais”.
O baixo peso associado à anorexia nervosa costuma causar atraso menstrual. Por isso, muitas mulheres com o distúrbio acreditam que não estão férteis. “Existe um mito de que a pessoa anorexia nervosa não consegue engravidar. Isso faz com que a taxa de gravidez não planejada entre as pacientes seja alta”, afirma a médica.
Mulheres que já têm insatisfação com o próprio corpo ou preocupação com o peso podem se sentir mais inseguras durante a gravidez. Se essa insegurança se tornar angustiante e prejudicar a alimentação, pode ser um sinal de um quadro mais grave.
Segundo Mireille Almeida, o ideal é que pessoas diagnosticadas com transtornos alimentares sejam acompanhadas desde o princípio da gravidez por uma equipe multiprofissional, como psiquiatra, obstetra, psicólogo e nutricionista.
É importante ainda que a gestante tente fazer as refeições regularmente e fique atenta a um possível aumento de anseios e angústias. Por causa dos efeitos colaterais, alguns medicamentos psiquiátricos para transtornos de humor são evitados durante a gestação ou consumidos em doses reduzidas.
A médica diz que o pós-parto pode piorar o transtorno alimentar em quem já tem esse diagnóstico e causar um comportamento de negligência da mãe sobre os cuidados com seu bebê.
Uma relação saudável com a comida
Qualquer momento é bom para melhorar a relação com a comida. No entanto, se a relação saudável com a comida for construída desde a infância, melhor.
“É preciso descascar mais e desembalar menos. A recomendação é buscar se alimentar com comidas in natura, com menos processamento possível, para poder sentir o sabor desse alimento, e buscar cozinhar em casa”, aponta a pediatra e nutróloga Virna Costa e Silva, professora do Departamento de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente na Universidade Federal do Ceará.
Segundo a médica, a fome oculta impacta desde a fertilidade até o pós-parto. A carência de nutrientes pode afetar a qualidade dos óvulos e dos hormônios ligados à fertilidade. Ela também pode restringir o crescimento e o desenvolvimento cerebral do bebê, assim como seu metabolismo.
Nas mães, a desnutrição às vezes é mascarada por cansaço e falta de ânimo. Ela pode impactar a qualidade do sono, os hormônios, o metabolismo, o processamento mental, a amamentação e a disposição para aguentar o peso físico da gravidez.
Nas crianças, a falta de nutrientes pode ser gatilho para obesidade, síndrome metabólica e hipertensão, porque elas acabam foram programadas metabolicamente para algo que está em carência.
“Existe uma recomendação habitual de que a gestante não ganhe muito peso. Isso é real, mas não deve gerar ansiedade. Hoje em dia, existe uma idealização da gravidez nas redes sociais, com modelos às vezes inacessíveis”, aponta.
Para facilitar a alimentação regular e a suplementação adequada, a pediatra aconselha deixar os alimentos da semana preparados na geladeira ou no congelador. Ela recomenda também que as mães busquem redes de apoio em grupos de atividades para gestantes, como yoga ou pilates, e ajuda de um educador físico para fazer exercícios adequados.
Olhando em frente
No caso de Hissnauer, foi não só na família, mas também no tratamento de seu transtorno, que encontrou essa rede de apoio e esperança. Ela espera terminar o curso de psicanálise, ampliar seu cardápio, estabilizar seu humor e dar uma vida boa para o bebê — uma menina, que vai se chamar Catarina.
“Eu vou querer dar uma boa alimentação para ela, mostrar que o corpo não é o problema e que a alimentação não precisa ser sofrida”, diz. “Espero que eu consiga comer de tudo, mas eu não sei se um dia eu vou conseguir isso”.
O Ministério da Saúde informou a Marie Claire que não contabiliza dados de atendimentos e diagnósticos de transtornos alimentares relacionados a gestações no Brasil.
Por Isabela Rocha, Colaboração Para Marie Claire — São Paulo
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